quarta-feira, outubro 20, 2010

Momento pretensioso da semana

Depois, descendo para a rua Nova do Almada, contou o caso da Adosinda. Fora no Silva, havia duas semanas, estando ele a cear com rapazes depois de S. Carlos, que lhes aparecera essa mulher inverosímil, vestida de vermelho, carregando sensatamente nos rr, metendo rr em todas as palavras, e perguntando pelo Sr. virrsconde... Qual virrsconde? Ela não sabia bem. Erra um virrsconde que encontrrárra no Crroliseu. Senta-se, oferecem-lhe champagne, e D. Adosinda começa a revelar-se um ser prodigioso. Falavam de política, do ministério e do déficit. D. Adosinda declara logo que conhece muito bem o déficit, e que é um belo rapaz... O déficit belo rapaz – imensa gargalhada! D. Adosinda zanga-se, exclama que já fora com ele a Sintra, que é um perfeito cavalheiro, e empregado no Banco Inglês... O déficit empregado no Banco Inglês - gritos, uivos, urros! E não cessou esta gargalhada continua, estrondosa, frenética, até ás cinco da manhã em que D. Adosinda fora rifada e saíra ao Teles!... Noite soberba!”

Eça de Queiroz, n’Os Maias, publicado em 1888.


Inadvertidamente, ontem vi uma cena do inenarrável programa da TVI, em que uns gajos saídos de um casting feito num bar de alterne em Gondomar discutiam, como já fazem há algumas semanas, o orçamento, o défice e a situação económica do país. Depois do noticiário, vi um pouco da Casa dos Segredos, em que um concorrente dizia “a gente vimos que escondestes os cigarros, foda-se!”. E o que é que a TVI censurou nesta frase? Onde é que TVI pôs o piiiiii? Terá sido na incorrecta utilização da forma conjugada do verbo “ver” na terceira pessoa do plural depois do infernal “a gente”? Terá sido no “escondestes”? Não. Foi no final da frase, que curiosamente foi a única parte pronunciada com distinção.
O que me surpreende mais nesta história é ainda existirem pessoas admiradas por termos as contas neste estado e um défice mais agudo que a voz da Júlia Pinheiro.

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