sábado, agosto 16, 2003

À prova de bala O

Para começar, aviso e peço desculpa pelo carácter gráfico que este texto possa conter para alguns e aconselho todos os que se possam sentir insultados pelo seu conteúdo, a não avançarem para além desta linha.
Feita a advertência, passo a discorrer sobre o assunto que me trouxe hoje aqui: "A menina que levou um tiro nos cornos", ou se preferirem "A miúda que levou um balázio na montra" ou até "A chavala que levou com uma pastilha na carola". Poderão sentir-se chocados por estas expressões e considerar que o autor destas linhas ultrapassou todos os limites do bom gosto e da moral mas provavelmente deveriam concentrar o vosso ódio e repugna naqueles que sim, a exploram e lucram com a sua miséria. Refiro-me aos meios de comunicação, mais especificamente e neste caso, a um canal de televisão, cujo telejornal populista, mais parece um versão televisiva do jornal "O Crime".
Para quem não esteja a par, refiro-me a uma infante que no ano passado foi alvejada na cabeça e ficou com o projéctil alojado no cérebro. A reportagem feita na altura, foi elaborada com aquele toque de "interesse humano", muito emocional e lamechas mas escassamente jornalística, aliás como muitas outras emitidas e que têm entre todas elas, uma coisa em comum. A promessa de que se as pessoas visadas aceitarem fazer a reportagem, autorizando que se conte ao mundo os seus azares, desgraças e privações, vão daí retirar apoios e vantagens.
Ora, nada poderia ser mais enganoso pois muito raramente essas pessoas serão de facto ajudadas por alguém, já que infelizmente a maior parte de nós age do mesmo modo. Vemos aquelas cenas na televisão e dizemos:"- Que chatice! Isto é que é uma vida! É preciso ter azar! Coitada!. Mas depressa esquecemos e regressamos à nossa vida e aos nossos problemas. E isto não é de censurar. A vida é mesmo assim e estas reportagens até acabam por servir como uma espécie de analgésico nacional porque mostram às pessoas que por mais "merdosa" que seja a sua vida, ainda existe alguém em pior estado.
O que é de condenar e veemente rejeitar, é o abuso que estas pessoas sofrem por parte dos meios de comunicação, na ilusão que estes os vão ajudar a ultrapassar as suas dificuldades quando na verdade, não passam de "carne" destinada a ser triturada pelo sistema e rejeitada no fim, quando já não existe qualquer utilidade para ela.
Mas o extremo do desprezível é ir buscar esta matéria prima para mais uma vez ou até mais, reintroduzi-la no sistema e usá-la em prol daquela nobre causa que são as audiências.
E foi o que aconteceu. Novamente se fez uma reportagem( se é que merece esse nome), desta vez relatando que os pais da menina que levou um "tiro nos cornos", "balázio na montra", "pastilha na carola", estão agora separados, ficando a menina a viver com a mãe num centro da segurança social por não terem para onde ir, tendo-se até, levantado a questão de possíveis abusos, tanto da mãe como da filha. Mais uma vez se apresentou uma "pseudonotícia", mostrando as agruras da vida e os problemas matrimoniais de um casal já assolado por dificuldades financeiras, emocionais, médicas e psicológicas. Terrível é pensar que isto irá prosseguir e que os "jornalistas" continuarão a acompanhar a vida desta criança, trazendo ao mundo todas as dificuldades, problemas, acidentes, doenças e desilusões que ela possa vir a ter ao longo da sua vida.
Por isso pergunto-vos: Será que devem ficar chocados e indignados pelas expressões aqui utilizadas, ou com o que se anda a fazer a muito boa gente, vítima das tristezas da vida, pobre de espírito, mas merecedora de todos os direitos e garantias concedidos a todos nós?
Pela minha parte, peço perdão caso tenha ofendido alguém e prometo que tais expressões não mais serão usadas levianamente. Resta saber, se a comunicação social tem consciência das atrocidades que fomenta ao expor estes dramas privados e mais importante, se tendo conhecimento dessa situação, continua, sem quaisquer remorsos ou responsabilidades, a explorar impunemente estas pessoas, transformando-as em instrumentos de uns parasitas sociais. E estes são à prova de bala... FA